A Teologia da Confissão da Guanabara: Doutrina sob perseguição

Introdução: Um documento teológico nascido sob ameaça

Em janeiro de 1558, na pequena ilha de Serigipe, atual Ilha de Villegaignon na Baía de Guanabara, um extraordinário documento teológico foi redigido em circunstâncias dramáticas. Três huguenotes franceses, presos e sob ameaça de morte, tiveram apenas doze horas para articular sua fé em resposta a um questionário teológico imposto pelo comandante Nicolas Durand de Villegaignon. O resultado foi a Confissão de Fé da Guanabara, o primeiro documento teológico reformado das Américas e um testemunho eloquente da doutrina calvinista em sua expressão mais pura.

A Confissão da Guanabara não foi um exercício acadêmico abstrato, mas uma declaração de fé escrita com tinta de pau-brasil por homens que sabiam que suas palavras poderiam custar-lhes a vida – e de fato custaram. Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre Bourdon não eram teólogos de formação, mas demonstraram notável conhecimento das Escrituras, dos Pais da Igreja e da teologia reformada, produzindo um documento que permanece como um tesouro doutrinário para as igrejas de tradição calvinista.

Neste artigo, mergulharemos na riqueza teológica da Confissão da Guanabara, analisando suas principais doutrinas, suas fontes e influências, e sua relevância para a compreensão da teologia reformada em seu período formativo. Veremos como, mesmo sob a sombra da perseguição, esses fiéis huguenotes articularam com clareza e convicção as verdades centrais da fé cristã segundo a perspectiva reformada.

Estrutura e conteúdo da Confissão da Guanabara

A Confissão de Fé da Guanabara, escrita originalmente em latim, tem a forma de um credo, com a maioria dos parágrafos iniciando com a palavra “cremos”. No entanto, sua extensão e a variedade de temas abordados a colocam na categoria das confissões de fé, comuns na época da Reforma Protestante.

O documento é composto por 17 parágrafos de diferentes tamanhos, abordando seis áreas teológicas principais:

  1. Doutrina da Trindade e Cristologia (parágrafos 1-4): trata da natureza de Deus como trino e da pessoa de Cristo, com suas naturezas divina e humana.
  2. Doutrina dos Sacramentos (parágrafos 5-9): dedica quatro artigos à Ceia do Senhor e um ao batismo.
  3. Livre Arbítrio (parágrafo 10): aborda a condição humana após a Queda e a incapacidade do homem natural para o bem espiritual.
  4. Autoridade Ministerial (parágrafos 11-12): discute o poder dos ministros para perdoar pecados e impor as mãos.
  5. Questões Matrimoniais (parágrafos 13-15): trata do divórcio, do casamento dos religiosos e dos votos de castidade.
  6. Intercessão e Orações (parágrafos 16-17): aborda a intercessão dos santos e as orações pelos mortos.

A introdução da Confissão faz uma bela aplicação do texto de 1 Pedro 3:15, que exorta os cristãos a estarem “sempre preparados para responder a todo aquele que pedir a razão da esperança” que há neles. Esta passagem bíblica era particularmente apropriada para a situação em que os huguenotes se encontravam, sendo chamados a dar razão de sua fé diante de um interrogador hostil.

A doutrina de Deus e a Cristologia na Confissão

O primeiro artigo da Confissão estabelece firmemente a doutrina trinitária ortodoxa:

“Cremos em um só Deus, imortal, invisível, criador do céu e da terra, e de todas as coisas, tanto visíveis como invisíveis, o qual é distinto em três pessoas: o Pai, o Filho e o Santo Espírito, que não constituem senão uma mesma substância em essência eterna e uma mesma vontade.”

Esta formulação reflete fielmente o ensino dos credos ecumênicos da igreja antiga, particularmente o Credo Niceno-Constantinopolitano, afirmando a unidade da essência divina e a distinção das três pessoas. A Confissão prossegue descrevendo as funções distintas das pessoas da Trindade:

“O Pai, fonte e começo de todo o bem; o Filho, eternamente gerado do Pai, o qual, cumprida a plenitude do tempo, se manifestou em carne ao mundo, sendo concebido do Santo Espírito, nasceu da virgem Maria, feito sob a lei para resgatar os que sob ela estavam, a fim de que recebêssemos a adoção de próprios filhos; o Santo Espírito, procedente do Pai e do Filho, mestre de toda a verdade, falando pela boca dos profetas, sugerindo as coisas que foram ditas por nosso Senhor Jesus Cristo aos apóstolos.”

Notavelmente, a Confissão afirma a dupla procissão do Espírito Santo (do Pai e do Filho), seguindo a tradição ocidental expressa no Filioque, em contraste com a posição da igreja oriental.

No segundo artigo, a Confissão aborda especificamente a pessoa de Cristo, afirmando a união inseparável de suas naturezas divina e humana:

“Adorando nosso Senhor Jesus Cristo, não separamos uma natureza da outra, confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana nele inseparáveis.”

Esta formulação está em plena harmonia com a definição cristológica do Concílio de Calcedônia (451 d.C.), que afirmou que Cristo é “reconhecido em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”.

O quarto artigo trata da segunda vinda de Cristo e do juízo final:

“Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo virá julgar os vivos e os mortos, em forma visível e humana como subiu ao céu, executando tal juízo na forma em que nos predisse no capítulo vinte e cinco de Mateus, tendo todo o poder de julgar, a Ele dado pelo Pai, sendo homem.”

Aqui, a Confissão afirma claramente a visibilidade e a humanidade de Cristo em sua segunda vinda, bem como sua autoridade como juiz, delegada pelo Pai. A referência a Mateus 25 aponta para a descrição do juízo final feita por Jesus, onde as ovelhas são separadas dos bodes com base em suas obras de misericórdia.

A doutrina dos sacramentos: foco central da controvérsia

A maior parte da Confissão (cinco dos dezessete artigos) é dedicada aos sacramentos, refletindo o fato de que as divergências sobre a Ceia do Senhor foram o ponto central do conflito entre os huguenotes e Villegaignon.

O quinto artigo apresenta uma compreensão claramente reformada da Ceia:

“Cremos que no santíssimo sacramento da ceia, com as figuras corporais do pão e do vinho, as almas fiéis são realmente e de fato alimentadas com a própria substância do nosso Senhor Jesus, como nossos corpos são alimentados de alimentos, e assim não entendemos dizer que o pão e o vinho sejam transformados ou transubstanciados no seu corpo, porque o pão continua em sua natureza e substância, semelhantemente ao vinho, e não há mudança ou alteração.”

Esta formulação rejeita explicitamente a doutrina católica romana da transubstanciação, que ensina que a substância do pão e do vinho é transformada no corpo e sangue de Cristo, embora as aparências (acidentes) permaneçam. Ao mesmo tempo, a Confissão afirma uma presença real de Cristo na Ceia, embora espiritual e não física, seguindo a posição de Calvino em contraste tanto com a transubstanciação católica quanto com a visão puramente simbólica de Zuínglio.

A Confissão cita Agostinho e Tertuliano para apoiar sua interpretação:

“O sinal, pois, nem nos dá a verdade, nem a coisa significada; mas Nosso Senhor Jesus Cristo, por seu poder, virtude e bondade, alimenta e preserva nossas almas, e as faz participantes da sua carne, e de seu sangue, e de todos os seus benefícios.”

“Vejamos a interpretação das palavras de Jesus Cristo: ‘Este pão é meu corpo.’ Tertuliano, no livro quarto contra Marcião, explica estas palavras assim: ‘este é o sinal e a figura do meu corpo.'”

“S. Agostinho diz: ‘O Senhor não evitou dizer: — Este é o meu corpo, quando dava apenas o sinal de seu corpo.'”

Estas citações patrísticas demonstram o conhecimento teológico dos autores e sua preocupação em mostrar que sua interpretação estava em continuidade com a tradição da igreja antiga.

Os artigos sexto e sétimo abordam questões litúrgicas relacionadas à Ceia: a não necessidade de misturar água ao vinho e a natureza da consagração. O oitavo artigo reafirma que a Ceia alimenta as almas, não os corpos, enfatizando novamente a natureza espiritual da presença de Cristo no sacramento.

O nono artigo trata do batismo:

“Cremos que o batismo é sacramento de penitência, e como uma entrada na igreja de Deus, para sermos incorporados em Jesus Cristo. Representa-nos a remissão de nossos pecados passados e futuros, a qual é adquirida plenamente, só pela morte de nosso Senhor Jesus.”

A Confissão rejeita práticas católicas como exorcismos, abjurações de Satanás, crisma, saliva e sal, considerando-as “tradições dos homens” e afirmando que os huguenotes se contentam “só com a forma e instituição deixada por nosso Senhor Jesus”.

A condição humana e o livre arbítrio

O décimo artigo da Confissão aborda a doutrina do livre arbítrio, apresentando uma visão claramente agostiniana e calvinista da condição humana após a Queda:

“Quanto ao livre arbítrio, cremos que, se o primeiro homem, criado à imagem de Deus, teve liberdade e vontade, tanto para bem como para mal, só ele conheceu o que era livre arbítrio, estando em sua integridade. Ora, ele nem apenas guardou este dom de Deus, assim como dele foi privado por seu pecado, e todos os que descendem dele, de sorte que nenhum da semente de Adão tem uma centelha do bem.”

Esta formulação afirma a total incapacidade do homem natural para o bem espiritual, uma doutrina conhecida como “depravação total” na teologia reformada. A Confissão cita Paulo (“o homem natural não entende as coisas que são de Deus”) e Oséias (“Tua perdição é de ti, ó Israel”) para apoiar esta posição.

O artigo prossegue contrastando o homem natural com o homem regenerado:

“Quanto ao homem cristão, batizado no sangue de Jesus Cristo, o qual caminha em novidade de vida, nosso Senhor Jesus Cristo restitui nele o livre arbítrio, e reforma a vontade para todas as boas obras, não todavia em perfeição, porque a execução de boa vontade não está em seu poder, mas vem de Deus.”

Esta passagem reflete a tensão entre a soberania divina e a responsabilidade humana característica da teologia reformada. O cristão regenerado tem sua vontade reformada para desejar o bem, mas a capacidade de realizar esse bem vem de Deus, não do próprio homem.

A Confissão conclui este artigo com uma afirmação da perseverança dos santos:

“O homem predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade humana, todavia não pode cair em impenitência. A este propósito, S. João diz que ele não peca, porque a eleição permanece nele.”

Esta doutrina, que ensina que aqueles verdadeiramente eleitos por Deus para a salvação perseverarão até o fim, é um dos pontos distintivos da teologia calvinista.

Autoridade eclesiástica e ministério

Os artigos décimo primeiro e décimo segundo tratam da autoridade dos ministros da igreja. O décimo primeiro artigo aborda o poder de perdoar pecados:

“Cremos que pertence só à Palavra de Deus perdoar os pecados, da qual, como diz santo Ambrósio, o homem é apenas o ministro; portanto, se ele condena ou absolve, não é ele, mas a Palavra de Deus que ele anuncia.”

Esta formulação rejeita a ideia de que os sacerdotes têm poder inerente para perdoar pecados, afirmando que eles são apenas ministros da Palavra de Deus, que é a verdadeira fonte do perdão. A Confissão cita Agostinho para apoiar esta posição: “não é pelo mérito dos homens que os pecados são perdoados, mas pela virtude do Santo Espírito”.

O décimo segundo artigo trata da imposição das mãos:

“Quanto à imposição das mãos, essa serviu em seu tempo, e não há necessidade de conservá-la agora, porque pela imposição das mãos não se pode dar o Santo Espírito, porquanto isto só a Deus pertence.”

Aqui, a Confissão parece rejeitar a prática católica da confirmação, na qual o bispo impõe as mãos para conferir o Espírito Santo. Os huguenotes afirmam que apenas Deus pode dar o Espírito, não um ato humano.

Questões matrimoniais e votos monásticos

Os artigos décimo terceiro a décimo quinto abordam questões relacionadas ao casamento e aos votos religiosos, temas de grande controvérsia na Reforma.

O décimo terceiro artigo trata do divórcio:

“A separação entre o homem e a mulher legitimamente unidos por casamento não se pode fazer senão por causa de adultério, como nosso Senhor ensina (Mateus 19:5).”

Esta posição reflete o ensino de Jesus sobre o divórcio, permitindo-o apenas em caso de infidelidade conjugal.

O décimo quarto artigo aborda o casamento dos bispos (pastores):

“São Paulo, ensinando que o bispo deve ser marido de uma só mulher, não diz que não lhe seja lícito tornar a casar, mas o santo apóstolo condena a bigamia a que os homens daqueles tempos eram muito afeitos.”

Aqui, a Confissão interpreta a instrução de Paulo em 1 Timóteo 3:2 não como proibição de segundas núpcias para os ministros, mas como condenação da poligamia.

O décimo quinto artigo critica os votos monásticos de castidade:

“Não é lícito votar a Deus, senão o que ele aprova. Ora, é assim que os votos monásticos só tendem à corrupção do verdadeiro serviço de Deus. É também grande temeridade e presunção do homem fazer votos além da medida de sua vocação, visto que a santa Escritura nos ensina que a continência é um dom especial (Mateus 15 e 1 Coríntios 7).”

Esta crítica aos votos monásticos é característica da Reforma, que rejeitou a ideia de que a vida celibatária era espiritualmente superior ao casamento. A Confissão argumenta que a continência é um dom especial, não algo que possa ser prometido por voto, e que tais votos frequentemente levam à hipocrisia e ao fracasso moral.

Intercessão dos santos e orações pelos mortos

Os dois últimos artigos da Confissão abordam práticas católicas relacionadas à intercessão dos santos e às orações pelos mortos.

O décimo sexto artigo afirma Cristo como único mediador:

“Cremos que Jesus Cristo é o nosso único Mediador, intercessor e advogado, pelo qual temos acesso ao Pai, e que, justificados no seu sangue, seremos livres da morte, e por ele já reconciliados teremos plena vitória contra a morte.”

Esta afirmação rejeita implicitamente a prática católica de invocar os santos como intercessores, enfatizando a suficiência de Cristo como mediador entre Deus e os homens.

O décimo sétimo artigo rejeita as orações pelos mortos:

“Quanto aos santos mortos, dizemos que desejam a nossa salvação e o cumprimento do Reino de Deus, e que o número dos eleitos se complete; todavia, não nos devemos dirigir a eles como intercessores para obterem alguma coisa, porque desobedeceríamos o mandamento de Deus.”

A Confissão conclui afirmando que os vivos devem contentar-se com a intercessão de Cristo e com as orações mútuas entre os membros da igreja militante, seguindo o exemplo e o mandamento de Cristo e dos apóstolos.

Influências teológicas na Confissão da Guanabara

A Confissão de Fé da Guanabara revela diversas influências teológicas que moldaram o pensamento de seus autores:

1. Influência Calvinista

A influência predominante é claramente a de João Calvino e da teologia reformada de Genebra. Os huguenotes haviam sido enviados pela Igreja Reformada de Genebra e traziam consigo a formação teológica recebida naquele centro da Reforma. A ênfase na soberania de Deus, na depravação total do homem após a Queda, na predestinação e na perseverança dos santos reflete distintamente o pensamento calvinista.

A compreensão da Ceia do Senhor expressa na Confissão também segue a posição de Calvino, que afirmava uma presença real mas espiritual de Cristo no sacramento, em contraste tanto com a transubstanciação católica quanto com a visão puramente simbólica de Zuínglio.

2. Influência dos Pais da Igreja

A Confissão demonstra notável conhecimento dos escritos patrísticos, citando Agostinho, Tertuliano, Ambrósio e Cipriano. Esta característica reflete o humanismo reformado, que valorizava o retorno às fontes antigas (ad fontes) e via nos Pais da Igreja testemunhas da verdade bíblica antes das corrupções medievais.

Particularmente significativa é a influência de Agostinho, cujas doutrinas da graça foram fundamentais para o desenvolvimento da teologia reformada. A visão da Confissão sobre o livre arbítrio e a condição humana após a Queda é claramente agostiniana.

3. Influência dos Credos Ecumênicos

A Confissão reflete a continuidade com a ortodoxia cristã histórica expressa nos credos ecumênicos. Sua doutrina trinitária e cristológica está em harmonia com o Credo Niceno-Constantinopolitano e a Definição de Calcedônia. O terceiro artigo menciona explicitamente “o símbolo” (provavelmente o Credo dos Apóstolos) como fonte de doutrina sobre o Filho de Deus e o Espírito Santo.

4. Influência da Confissão Francesa

Embora não seja mencionada explicitamente, é provável que a Confissão Francesa de Fé (também conhecida como Confissão de La Rochelle), que estava sendo desenvolvida na mesma época, tenha influenciado o pensamento dos huguenotes da Guanabara. Há semelhanças notáveis entre os dois documentos em termos de estrutura e conteúdo.

Comparação com outras confissões reformadas

A Confissão de Fé da Guanabara se insere no contexto mais amplo do movimento confessional da Reforma Protestante. É instrutivo compará-la com outras confissões reformadas importantes:

1. Confissão Francesa (1559)

A Confissão Francesa, redigida principalmente por Calvino e adotada pelo primeiro sínodo nacional da Igreja Reformada da França em 1559, compartilha muitas semelhanças com a Confissão da Guanabara. Ambas refletem a teologia calvinista e abordam questões semelhantes, como a autoridade das Escrituras, a doutrina de Deus, a condição humana após a Queda, a cristologia e os sacramentos.

No entanto, a Confissão Francesa é mais extensa (40 artigos) e aborda alguns temas não tratados na Confissão da Guanabara, como a doutrina da igreja, a disciplina eclesiástica e a relação entre igreja e estado.

2. Confissão Belga (1561)

A Confissão Belga, escrita por Guido de Brès para os cristãos reformados nos Países Baixos, também tem pontos em comum com a Confissão da Guanabara. Ambas foram escritas em contextos de perseguição (de Brès foi martirizado em 1567) e ambas articulam a fé reformada em oposição ao catolicismo romano.

A Confissão Belga, com seus 37 artigos, é mais sistemática e abrangente que a da Guanabara, mas compartilha com ela a ênfase na autoridade das Escrituras, na doutrina trinitária, na cristologia, na justificação pela fé e na compreensão reformada dos sacramentos.

3. Confissão de Westminster (1646)

A Confissão de Westminster, embora posterior à da Guanabara em quase um século, representa o desenvolvimento maduro da teologia reformada. Comparando as duas, percebemos que a Confissão da Guanabara, apesar de sua brevidade e das circunstâncias de sua composição, já contém em germe muitas das doutrinas que seriam mais plenamente articuladas em Westminster.

A principal diferença está na abrangência e na sistematização. A Confissão de Westminster, com seus 33 capítulos, é um tratado teológico completo, enquanto a da Guanabara é mais focada nas questões que estavam em disputa com Villegaignon. No entanto, nas doutrinas que ambas abordam, há notável concordância.

O significado teológico da Confissão da Guanabara

A Confissão de Fé da Guanabara possui um significado teológico que transcende seu contexto histórico imediato:

1. Testemunho da Universalidade da Fé Reformada

A Confissão demonstra que a teologia reformada não estava confinada à Europa, mas rapidamente se espalhou para o Novo Mundo. O fato de que cristãos reformados no Brasil colonial, a milhares de quilômetros de Genebra, pudessem articular com tanta clareza e precisão as doutrinas calvinistas, testemunha a coerência e a universalidade dessa tradição teológica.

2. Exemplo de Teologia sob Perseguição

A Confissão ilustra como a teologia não é apenas um exercício acadêmico, mas pode ser uma questão de vida ou morte. Os huguenotes da Guanabara não estavam escrevendo um tratado teórico, mas dando razão da esperança que havia neles diante de um interrogador hostil, sabendo que suas respostas poderiam custar-lhes a vida.

Esta dimensão existencial da teologia é frequentemente perdida em contextos acadêmicos, mas é recuperada em situações de perseguição. A Confissão da Guanabara nos lembra que as doutrinas cristãs não são abstrações, mas verdades pelas quais vale a pena viver e morrer.

3. Afirmação da Continuidade com a Igreja Antiga

A Confissão demonstra a preocupação reformada em afirmar a continuidade com a igreja antiga e os Pais da Igreja. Contra a acusação católica de que os protestantes eram inovadores e hereges, os huguenotes da Guanabara citam Agostinho, Tertuliano, Ambrósio e Cipriano para mostrar que sua compreensão da fé estava em harmonia com a tradição patrística.

Esta característica reflete o princípio reformado de que a Reforma não era uma inovação, mas uma recuperação da pureza doutrinária da igreja primitiva, que havia sido obscurecida por acréscimos medievais.

4. Expressão da Clareza e Simplicidade da Fé Reformada

Apesar das circunstâncias adversas e do curto prazo para sua redação, a Confissão da Guanabara apresenta as doutrinas reformadas com notável clareza e simplicidade. Isso demonstra que a teologia reformada, embora profunda, não é necessariamente complexa ou inacessível.

Os huguenotes da Guanabara não eram teólogos profissionais, mas cristãos leigos com boa formação bíblica e doutrinária. Sua capacidade de articular a fé reformada de maneira clara e convincente é um testemunho da acessibilidade dessa tradição teológica.

A relevância contemporânea da teologia da Confissão

A teologia expressa na Confissão de Fé da Guanabara continua relevante para a igreja contemporânea em vários aspectos:

1. Modelo de Fidelidade Doutrinária sob Pressão

Em uma época de relativismo teológico e pressão para diluir as convicções cristãs históricas, a Confissão da Guanabara oferece um modelo de fidelidade doutrinária mesmo sob ameaça extrema. Os huguenotes não comprometeram suas convicções para salvar suas vidas, preferindo morrer como fiéis testemunhas da verdade.

Este exemplo desafia a igreja contemporânea a manter a integridade doutrinária mesmo quando isso implica em custos sociais, profissionais ou pessoais.

2. Afirmação da Centralidade de Cristo

A cristologia robusta da Confissão, juntamente com sua ênfase em Cristo como único mediador, oferece um corretivo necessário às tendências contemporâneas que relativizam a singularidade de Cristo ou diluem sua centralidade na fé cristã.

A afirmação de que Jesus Cristo é o único caminho para Deus, embora impopular na cultura pluralista atual, permanece como um pilar inegociável da fé cristã, como bem demonstra a Confissão da Guanabara.

3. Valorização da Tradição Reformada

Num tempo em que muitas igrejas evangélicas parecem desconectadas de suas raízes históricas, a Confissão da Guanabara convida os cristãos reformados a valorizarem e aprofundarem sua compreensão da rica tradição teológica que herdaram.

O estudo deste documento histórico pode ajudar as igrejas contemporâneas a recuperarem doutrinas reformadas fundamentais que têm sido negligenciadas ou distorcidas, como a soberania de Deus, a depravação humana, a graça irresistível e a perseverança dos santos.

4. Inspiração para Cristãos Perseguidos

Para cristãos que enfrentam perseguição em várias partes do mundo hoje, a Confissão da Guanabara e a história de seus autores oferecem inspiração e encorajamento. O exemplo dos mártires da Guanabara demonstra que a fidelidade a Cristo, mesmo diante da morte, não é em vão, mas deixa um legado duradouro que continua a inspirar gerações futuras.

Perguntas frequentes sobre a teologia da Confissão da Guanabara

Qual é a visão da Confissão da Guanabara sobre a Ceia do Senhor?

A Confissão apresenta uma compreensão reformada da Ceia, afirmando uma presença real mas espiritual de Cristo no sacramento. Rejeita explicitamente a transubstanciação católica, mantendo que o pão e o vinho permanecem em sua substância natural, mas servem como sinais sacramentais através dos quais Cristo alimenta espiritualmente os fiéis.

Como a Confissão da Guanabara aborda a questão do livre arbítrio?

A Confissão adota uma posição agostiniana e calvinista, afirmando que após a Queda, o homem perdeu completamente a liberdade para o bem espiritual. Apenas o cristão regenerado tem sua vontade reformada por Cristo para desejar o bem, embora a capacidade de realizá-lo venha de Deus, não do próprio homem.

Qual é a relação da Confissão da Guanabara com outras confissões reformadas?

A Confissão da Guanabara compartilha as mesmas convicções teológicas fundamentais das principais confissões reformadas, como a Confissão Francesa, a Confissão Belga e a Confissão de Westminster. Embora mais breve e menos sistemática, ela expressa a mesma compreensão reformada das doutrinas centrais da fé cristã.

Por que a Confissão dedica tanto espaço aos sacramentos?

Os sacramentos, especialmente a Ceia do Senhor, foram o ponto central do conflito entre os huguenotes e Villegaignon. As divergências sobre a natureza da presença de Cristo na Ceia e sobre as práticas sacramentais foram o que precipitou a ruptura entre eles, levando à expulsão dos reformados da ilha e, eventualmente, ao martírio dos autores da Confissão.

Conclusão: Uma teologia forjada no fogo da perseguição

A teologia da Confissão de Fé da Guanabara não foi desenvolvida nas salas confortáveis de uma academia ou nos claustros tranquilos de um mosteiro, mas na prisão de uma ilha remota, sob a sombra da morte iminente. Foi uma teologia forjada no fogo da perseguição, testada no cadinho do sofrimento.

Talvez por isso mesmo, ela brilhe com uma clareza e uma convicção que muitas vezes faltam em tratados teológicos mais elaborados. Os huguenotes da Guanabara não estavam engajados em sutilezas acadêmicas ou disputas escolásticas; estavam dando razão da esperança que havia neles, sabendo que suas palavras seriam suas últimas.

A Confissão da Guanabara nos lembra que a teologia cristã, em sua essência mais pura, não é um exercício intelectual abstrato, mas uma articulação da fé viva que sustenta o crente mesmo diante da morte. É uma teologia que não apenas informa a mente, mas fortalece o coração e prepara o cristão para enfrentar o martírio, se necessário.

Como igreja contemporânea, somos chamados a recuperar essa dimensão existencial da teologia, que não separa a doutrina da vida, o conhecimento da fidelidade, a ortodoxia da ortopraxia. A Confissão da Guanabara nos desafia a abraçar uma teologia que não apenas satisfaz nossa curiosidade intelectual, mas que molda nossa identidade, orienta nossa conduta e sustenta nossa esperança, mesmo nas circunstâncias mais adversas.

Que possamos, como os mártires da Guanabara, estar sempre prontos para dar razão da esperança que há em nós, com mansidão e temor, mantendo boa consciência, para que, naquilo em que somos difamados, sejam envergonhados os que caluniam o nosso bom procedimento em Cristo (1 Pedro 3:15-16).

Você gostaria de aprofundar seu conhecimento sobre as doutrinas reformadas expressas na Confissão da Guanabara? Continue acompanhando nossa série de artigos sobre este importante documento histórico e compartilhe este conteúdo com outros interessados na rica herança teológica do protestantismo no Brasil.

Referências bibliográficas

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