“A Ceia é para nós não apenas um símbolo, mas uma participação verdadeira e viva de Cristo, que nos alimenta com Seu próprio corpo e sangue — não carnalmente, mas espiritualmente.”
— João Calvino, Institutas da Religião Cristã, IV.17.10
Introdução
O feriado de Corpus Christi, celebrado anualmente no calendário litúrgico romano, tem por objetivo exaltar a presença real de Cristo na Eucaristia. Trata-se de uma data profundamente ligada à doutrina da transubstanciação, segundo a qual, após a consagração, o pão e o vinho deixam de ser substâncias materiais e se transformam no corpo e sangue de Cristo, embora mantenham a aparência sensível de pão e vinho.
Essa doutrina foi formalizada pelo Concílio de Latrão IV (1215) e reafirmada dogmaticamente no Concílio de Trento (1545–1563), especialmente em resposta à Reforma Protestante. Neste artigo, aproveitamos a ocasião para considerar, com respeito e rigor teológico, as diferenças fundamentais entre a doutrina católica da Eucaristia e a compreensão reformada da Ceia do Senhor, enfatizando o ensino da presença espiritual de Cristo, os benefícios sacramentais para os crentes e sua relação com a gloriosa vitória de Cristo sobre o pecado, a morte e o diabo — a doutrina do Christus Victor.
I. A Eucaristia no Catolicismo Romano: Transubstanciação e Sacrifício

A teologia católica romana ensina que, durante a Missa, ao serem pronunciadas as palavras da consagração — Hoc est enim corpus meum — ocorre uma mudança ontológica: o pão e o vinho são convertidos, em sua substância, no corpo e sangue de Cristo. A forma permanece, mas a essência se transforma (trans-substantia). Esse ato, segundo Roma, renova o sacrifício de Cristo, tornando-o presente de maneira incruenta no altar.
O Catecismo da Igreja Católica afirma:
“No Santíssimo Sacramento da Eucaristia estão contidos verdadeira, real e substancialmente o Corpo e o Sangue, a Alma e a Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo” (CIC §1374).
Além disso, é ensinado que a missa tem eficácia ex opere operato, ou seja, a graça é conferida pelo simples ato de realizar o sacramento, independentemente da fé do participante, desde que ele não tenha pecado mortal.
Essa compreensão é inseparável da estrutura sacerdotal do culto romano: o padre atua como um mediador que oferece Cristo novamente, embora de modo incruento, pelos pecados do povo. A mesa é um altar, e a Eucaristia é um sacrifício contínuo.
II. A Ceia do Senhor na Reforma Protestante: Palavra, Fé e Participação Espiritual
Os Reformadores rejeitaram tanto o sacrifício repetido de Cristo quanto a transformação substancial dos elementos, por considerarem tais doutrinas contrárias à suficiência da cruz e à natureza simbólica e sacramental do culto cristão.
a) Lutero: União sacramental
Martinho Lutero, embora não aceitasse a transubstanciação, propôs a doutrina da consubstanciação ou presença “em, com e sob” os elementos. Cristo está corporalmente presente na Ceia, mas sem mudança de substância. Ele sustentava uma presença física e real, distinta da católica, mas ainda sensorial.
b) Zwinglio: Memória e sinal
Ulrico Zwinglio, por outro lado, enfatizou a Ceia como memorial simbólico, negando qualquer tipo de presença real de Cristo. Para ele, os elementos eram apenas sinais externos da graça interior e sua eficácia era limitada à memória e obediência.
c) Calvino: Presença real espiritual
João Calvino ofereceu uma síntese mais profunda e bíblica. Ele afirmava que Cristo está verdadeiramente presente na Ceia, não em substância física, mas espiritualmente. O Espírito Santo eleva os fiéis à comunhão com Cristo no céu, e, pela fé, participam de seu corpo e sangue de maneira real e eficaz.
Nas palavras do reformador:
“O sinal não é vazio, mas nos dá aquilo que promete, porque o Senhor, ao nos dar visivelmente o símbolo do corpo e sangue de Cristo, não quer nos iludir, mas efetivamente nos unir a Ele.” (Institutas, IV.17.10)
Para Calvino, a Ceia é um meio de graça: ela comunica os benefícios da obra redentora de Cristo, fortalece a fé, assegura o perdão, alimenta a alma e preserva a unidade do corpo de Cristo, a Igreja.
III. Os benefícios espirituais da Ceia
A teologia reformada reconhece a Ceia como um sacramento instituído por Cristo (Mt 26.26–29; 1Co 11.23–29), não como um ritual humano, mas como sinal visível de uma graça invisível. Dentre os principais benefícios, destacam-se:
- Comunhão com Cristo: Pela fé, o crente se alimenta de Cristo, fonte de vida eterna (Jo 6.35, 53–56), embora o texto de João 6 não trate diretamente da Ceia, mas da comunhão com Cristo pela fé — um princípio que a Ceia sela.
- Reafirmação do perdão: A Ceia é um testemunho visível da obra consumada da cruz. O crente que participa com fé e arrependimento recebe a certeza de que seus pecados estão perdoados (Mt 26.28).
- Unidade e comunhão eclesial: O partir do pão é um sinal de que somos “um só corpo” (1Co 10.16–17), um povo redimido, sustentado por um único Redentor.
- Fortalecimento espiritual: A Ceia edifica e consola, ao lembrar que o sangue do pacto eterno foi derramado por nós, e que Cristo é nosso sustento na peregrinação.
IV. A Ceia como proclamação da vitória: Christus Victor
O apóstolo Paulo ensina que, ao participarmos da Ceia, “anunciamos a morte do Senhor até que Ele venha” (1Co 11.26). Esta morte, contudo, não é sinal de derrota — é o ato supremo de vitória cósmica sobre as potestades do mal.
A tradição patrística, especialmente em Irineu de Lião e Gregório de Níssa, compreendia a morte de Cristo como uma batalha contra Satanás, e essa ênfase foi retomada com vigor em correntes reformadas contemporâneas por meio da doutrina do Christus Victor — Cristo como vencedor sobre os inimigos do Reino: pecado, morte, inferno e o diabo.
A Ceia, nesse sentido, é uma proclamação visível da vitória do Cordeiro, cujo sangue foi derramado e que agora reina. Ela nos nutre com os frutos dessa vitória: reconciliação, libertação e esperança escatológica.
“Cristo expôs os principados e potestades ao desprezo, triunfando deles na cruz.” (Cl 2.15)
Cada vez que participamos da Ceia, declaramos não apenas o perdão, mas a libertação. Não apenas a comunhão, mas a conquista. Celebramos, com pão e vinho, que Cristo venceu — e nos fez mais que vencedores com Ele.
Conclusão
A Ceia do Senhor, como entendida pela Reforma, não é um sacrifício renovado, mas um sacramento consumado, um banquete de comunhão com o Cristo vivo e glorificado. Ao contrário da concepção romanista de um altar com uma vítima presente fisicamente, os reformadores apontaram para uma mesa de comunhão com o Rei ressuscitado, presente pelo Espírito e recebido pela fé.
Neste feriado de Corpus Christi, marcado por procissões e adorações eucarísticas, é necessário lembrar com reverência e fidelidade que Cristo se ofereceu uma só vez, de uma vez por todas (Hb 10.10–14), e que Ele agora nos convida, não a assistirmos um novo sacrifício, mas a nos assentarmos à Sua mesa como filhos libertos.
Referências
- CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã, vol. IV. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
- CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2000.
- BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
- RIDDERBOS, Herman. Paulo – O Pensador da Revelação. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
- GERRISH, B. A. The Old Protestantism and the New. T&T Clark, 1982.
- GUSTAF AULÉN. Christus Victor: An Historical Study of the Three Main Types of the Idea of Atonement. Wipf & Stock, 2003.
- WESTMINSTER ASSEMBLY. Catecismo Maior de Westminster, perguntas 168–177.