“Deus não estabeleceu os reis para que, esquecidos da sua condição, dominassem com impetuosidade desordenada; mas, porque são ministros de Deus, devem dar conta de sua administração ao supremo Rei.”
— João Calvino, Comentário sobre Romanos 13.1
Introdução
Quando João Calvino chegou a Genebra em 1536, a cidade recém-havia se libertado do domínio do duque de Saboia e do bispo católico que governava em aliança com ele. O cenário era de caos moral, insegurança institucional e um profundo desejo por estabilidade. Os cidadãos haviam abraçado o protestantismo como fé oficial, mas ainda não possuíam uma estrutura eclesiástica ou civil que correspondesse ao novo credo.
Calvino, relutante em assumir liderança política, foi convencido por Guilherme Farel a permanecer em Genebra. Sua permanência marcou o início de um processo profundo de reformulação da sociedade sob os princípios da Escritura. Não se tratava apenas de doutrina, mas da convicção de que Cristo reina sobre todos os aspectos da vida — inclusive o governo civil. Assim se formou o que hoje chamamos de “Genebra reformada”.
Este artigo analisa os fundamentos políticos e teológicos que permitiram à Genebra do século XVI tornar-se um modelo histórico de uma cidade governada sob Deus, onde a Lei divina servia como parâmetro para o bem comum, e onde a autoridade civil e eclesiástica cooperavam segundo vocações distintas, mas complementares.
I. O contexto de Genebra: da crise institucional à Reforma
Antes da chegada do protestantismo, Genebra era uma cidade marcada por uma tensão entre o poder episcopal e os anseios de autonomia dos burgueses. A estrutura feudal, dominada por um bispo-príncipe, estava em declínio. As ideias de Lutero e Zwinglio começaram a ganhar força entre os cidadãos e líderes, que viam na Reforma não apenas uma purificação da fé, mas uma renovação da ordem social.
Com a expulsão do bispo em 1535 e a adoção oficial da Reforma em 1536, Genebra se viu numa situação peculiar: uma cidade sem uma estrutura estável de governo, mas com fome de justiça e verdade. Foi nesse vazio que o ministério de Calvino começou a operar.
II. Calvino e a soberania de Deus na política
Ao contrário da caricatura de um “teocrata tirânico”, Calvino atuava com profundo temor de Deus e respeito pelas instituições civis. Sua teologia política é profundamente baseada na ideia da soberania divina: todo governo humano é delegado por Deus, e deve agir como servo da justiça e ministro do bem (Rm 13.1–4).
Calvino afirmava:
“Deus reina por Sua Palavra, e aqueles que governam devem ser ministros dessa Palavra.”
(Institutas, IV.20.9)
Isso significa que o governo não é autônomo, mas submisso à Lei moral de Deus. A autoridade civil deve promover o bem comum não com base em convenções humanas volúveis, mas sob os preceitos da justiça revelada.
III. A Reforma como restauração da ordem pública
A Reforma em Genebra não foi um evento meramente espiritual, mas um esforço coordenado para restaurar a ordem em todas as áreas da vida social: educação, economia, moralidade pública, artes e leis civis. A cidade foi vista como um corpo orgânico — onde Igreja e Estado atuavam com mútua responsabilidade diante de Deus.
Em 1541, Calvino apresenta as Ordenanças Eclesiásticas, que visavam organizar a Igreja e seu relacionamento com o governo civil. Com elas, criou-se uma estrutura sólida para:
- Formação e disciplina dos presbíteros;
- Estabelecimento do Consistório como órgão de correção moral;
- Implementação da disciplina eclesiástica com apoio civil;
- Defesa da pureza doutrinária e do testemunho público do Evangelho.
IV. O papel da Lei de Deus como base para a política
Um dos elementos centrais da experiência de Genebra foi a submissão da legislação civil à Lei moral de Deus. Calvino não defendia uma simples replicação da lei mosaica na modernidade, mas via nela princípios eternos de justiça aplicáveis à vida pública. Ele distinguiu:
- A lei moral (Decálogo) como permanente;
- A lei cerimonial como cumprida em Cristo;
- A lei civil israelita como modelo de sabedoria e equidade.
Em suas palavras:
“A Lei de Deus é a regra perfeita da justiça… Se a justiça é o que agrada a Deus, então devemos buscá-la em Sua Lei.”
(Comentário sobre Deuteronômio, 5.1)
Assim, crimes como adultério, blasfêmia, roubo e idolatria pública eram tratados não como meras “infrações civis”, mas como ofensas à ordem divina da sociedade.
V. Cooperação entre Igreja e Estado: distinção de esferas, unidade de propósito
Genebra nunca aboliu a distinção entre Igreja e Estado — pelo contrário, refinou-a à luz da Escritura. O Estado não administrava os sacramentos; a Igreja não exercia poder de espada. Mas ambos cooperavam sob o mesmo objetivo: promover uma sociedade justa, piedosa e ordeira, sob o senhorio de Cristo.
O Consistório, formado por pastores e anciãos, aconselhava o governo civil sobre questões morais, e podia recomendar excomunhões. O Conselho civil, por sua vez, apoiava a disciplina com sanções legais. Essa interação visava preservar a paz e a santidade da cidade.
VI. Impacto e legado político de Genebra
A experiência de Genebra tornou-se modelo para os huguenotes na França, os puritanos na Inglaterra e na Nova Inglaterra, e influenciou profundamente o pensamento político protestante posterior. A ideia de um governo limitado pela Lei de Deus, sujeito ao escrutínio da Palavra, e voltado ao bem comum, ecoa até hoje nas doutrinas de resistência legítima, liberdade de consciência e governo justo.
Conclusão
Este artigo analisa os fundamentos políticos e teológicos que permitiram à Genebra do século XVI tornar-se uma tentativa de dar continuidade ao entendimento bíblico de governo, onde a Lei divina servia como parâmetro para o bem comum, e onde a autoridade civil e eclesiástica cooperavam segundo vocações distintas, mas complementares.
Bibliografia e Referências
- CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
- CALVINO, João. Comentário sobre Deuteronômio. Trad. português disponível em domínio público.
- KINGDON, Robert M. Geneva and the Consolidation of the Reformation. Geneva: Librairie Droz, 1959.
- BATTLES, Ford Lewis. The Theology of Calvin. Atlanta: John Knox Press, 1977.
- VAN TIL, Cornelius. Christian Theistic Ethics. P&R Publishing, 1971.
- RUSHDOONY, R. J. Institutes of Biblical Law. The Chalcedon Foundation, 1973.
- KIRK, David. Calvin and the Foundations of Modern Politics. In: Church & State, Vol. 10, 2001.