O Martírio dos Huguenotes: Perseguição e fidelidade no Brasil colonial

Introdução: O sangue dos mártires na terra do pau-brasil

Na manhã de 9 de fevereiro de 1558, na pequena ilha de Serigipe, atual Ilha de Villegaignon na Baía de Guanabara, três homens franceses caminharam para a morte com uma dignidade que impressionou até mesmo seus algozes. Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre Bourdon, huguenotes (protestantes franceses) enviados ao Brasil pela Igreja Reformada de Genebra, foram estrangulados e lançados ao mar por ordem de Nicolas Durand de Villegaignon, o comandante da colônia França Antártica. Seu crime? Manterem-se fiéis às suas convicções teológicas reformadas, recusando-se a aceitar doutrinas que consideravam contrárias às Escrituras.

Este episódio, pouco conhecido na história brasileira, marca o primeiro martírio protestante nas Américas e constitui um capítulo fundamental na história do cristianismo reformado no Novo Mundo. O sangue desses mártires, derramado nas águas da Guanabara, tornou-se semente da fé protestante em solo brasileiro, muito antes da chegada dos missionários do século XIX que tradicionalmente são associados ao início do protestantismo no Brasil.

Neste artigo, exploraremos a história do martírio dos huguenotes da Guanabara, examinando o contexto histórico da perseguição, os eventos que levaram à execução, o testemunho de fé dos mártires e o significado duradouro de seu sacrifício para a igreja cristã, especialmente para a tradição reformada no Brasil.

O contexto da perseguição religiosa na Europa do século XVI

Para compreender adequadamente o martírio dos huguenotes da Guanabara, é necessário situá-lo no contexto mais amplo da perseguição religiosa que caracterizou a Europa do século XVI, particularmente a França.

A Reforma Protestante, iniciada em 1517 com as 95 teses de Martinho Lutero, rapidamente se espalhou pela Europa, assumindo diferentes formas em diferentes regiões. Na França, o movimento reformado foi fortemente influenciado pelos escritos de João Calvino, um francês que, forçado a deixar seu país natal devido à perseguição, estabeleceu-se em Genebra, na Suíça, transformando a cidade em um centro de irradiação da teologia reformada.

Os seguidores franceses de Calvino, conhecidos como huguenotes, enfrentaram intensa perseguição por parte da coroa francesa e da Igreja Católica. O rei Francisco I (1515-1547), inicialmente tolerante com os protestantes, mudou de posição após o incidente dos cartazes em 1534, quando manifestos anticatólicos foram afixados em Paris e outras cidades, inclusive na porta do quarto real. A partir de então, a perseguição intensificou-se, com numerosos protestantes sendo presos, torturados e executados.

Seu sucessor, Henrique II (1547-1559), continuou e intensificou a política de repressão aos huguenotes. Em 1551, promulgou o Édito de Châteaubriant, que estabelecia severas penalidades para os “hereges” e seus simpatizantes. A situação dos protestantes franceses era tão precária que muitos buscaram refúgio em outros países, como Suíça, Alemanha, Inglaterra e Holanda.

Foi nesse contexto de perseguição que surgiu a ideia de estabelecer uma colônia francesa no Novo Mundo que pudesse servir, entre outras coisas, como refúgio para os huguenotes. Nicolas Durand de Villegaignon, vice-almirante da Bretanha e cavaleiro da Ordem de Malta, concebeu o projeto da França Antártica, uma colônia na Baía de Guanabara, atual Rio de Janeiro.

As motivações de Villegaignon para tal empreendimento são objeto de debate entre historiadores. Provavelmente, houve uma combinação de fatores: o desejo de adquirir fama e riquezas, a ambição de conquistar novos territórios para a França e, possivelmente, a intenção de criar um refúgio para pessoas que sofriam perseguição religiosa em sua terra natal.

Para viabilizar seu projeto, Villegaignon aproximou-se do vice-almirante Gaspard de Coligny, um dos principais conselheiros do reino francês e simpatizante da Reforma Protestante. Com o apoio de Coligny, conseguiu obter do rei Henrique II dois navios equipados e recursos para as despesas da viagem. Após recrutar trabalhadores, inclusive das prisões de Paris e Rouen, Villegaignon partiu do porto de Havre, na Normandia, em 15 de julho de 1555.

A França Antártica e a chegada dos huguenotes

A expedição de Villegaignon chegou à Baía de Guanabara em 10 de novembro de 1555, sendo bem recebida pelos indígenas tupinambás, já acostumados à presença francesa na região. O grupo estabeleceu-se na pequena ilha de Serigipe (posteriormente denominada Villegaignon), onde construiu o Forte Coligny. A colônia recebeu o nome de “França Antártica”.

Enfrentando dificuldades na administração da colônia e desejando elevar o nível religioso e moral dos colonos, Villegaignon decidiu escrever à Igreja Reformada de Genebra, solicitando o envio de pastores e outros cristãos que pudessem contribuir com a vida espiritual da comunidade e evangelizar os indígenas.

Coligny, a quem também foi enviada uma carta, convidou para liderar o novo grupo de colonos um ex-vizinho seu, Filipe de Corguilleray, conhecido como senhor Du Pont, que então residia em Genebra. Por sua vez, João Calvino e seus colegas escolheram com entusiasmo os pastores Pierre Richier (50 anos) e Guillaume Chartier (30 anos) para acompanhar o grupo.

Os huguenotes que os acompanharam foram: Pierre Bourdon, Matthieu Verneuil, Jean du Bourdel, André Lafon, Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jacques Rousseau e o sapateiro Jean de Léry, que mais tarde se tornaria o notável cronista da viagem. Ao todo, eram 14 pessoas.

O grupo deixou Genebra no dia 16 de setembro de 1556. Após visitarem o almirante Coligny em Chatillon-Sur-Loing, seguiram para Paris, onde outros se uniram à comitiva. Alguns historiadores acreditam que entre eles estava Jacques Le Balleur. Após passarem por Rouen, chegaram ao porto de Honfleur, na Normandia, embarcando para o Brasil no dia 19 de novembro.

A frota de três navios era comandada por Bois Le Conte, sobrinho de Villegaignon. A bordo iam cerca de 290 pessoas, inclusive algumas mulheres. Como era comum nas viagens transoceânicas da época, a travessia foi extremamente penosa. Em um momento particularmente difícil, os reformados recitaram o Salmo 107, especialmente os versos 23-30, que falam sobre aqueles que “descem ao mar em navios” e são salvos por Deus das tempestades.

Finalmente, no dia 7 de março de 1557, os viajantes entraram no “braço de mar” chamado Guanabara pelos indígenas e Rio de Janeiro pelos portugueses. O desembarque no forte Coligny ocorreu no dia 10 de março, uma quarta-feira.

O primeiro culto protestante nas Américas e o início dos conflitos

O vice-almirante Villegaignon recebeu o grupo com aparente cordialidade e demonstrou alegria por virem estabelecer uma igreja reformada na colônia. Logo em seguida, reunidos todos em uma pequena sala no centro da ilha, foi realizado um culto de ação de graças, o primeiro culto protestante ocorrido no Novo Mundo.

O ministro Richier iniciou o culto com uma oração invocando a Deus. Em seguida, foi cantado em uníssono, segundo o costume de Genebra, o Salmo 5: “Dá ouvidos, Senhor, às minhas palavras” (“Aux paroles que je veux dire, plaise-toi l’aureille prester”). Esse hino constava do Saltério Huguenote, com metrificação de Clemente Marot e melodia de Luís Bourgeois, e até hoje se mantém nos hinários franceses.

Após o cântico, o pastor Richier pregou um sermão baseado no Salmo 27:4: “Uma coisa peço ao Senhor e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo”. Concluído o culto, os huguenotes tiveram sua primeira refeição brasileira: farinha de mandioca, peixe moqueado e raízes assadas no borralho. Dormiram em redes, à maneira indígena.

Por ordem de Villegaignon, passaram a realizar-se preces públicas noturnas após o trabalho diário, devendo os pastores pregar diariamente e duas vezes aos domingos. A Santa Ceia segundo o rito reformado foi celebrada pela primeira vez no domingo 21 de março de 1557. Em todos os cultos entoavam-se salmos, segundo o uso das igrejas reformadas.

Inesperadamente, o vice-almirante, que de início se mostrara muito simpático à igreja reformada, começou a levantar questões sobre pontos doutrinários, em especial a Ceia do Senhor. Villegaignon defendia que a presença de Cristo no sacramento era não somente espiritual, mas também física. No início de junho, enviou o pastor Chartier de volta à França para colher opiniões dos teólogos, especialmente de Calvino, a esse respeito.

Com o passar do tempo, Villegaignon começou a insistir em outros pontos: era necessário adicionar água ao vinho da Ceia, o pão consagrado beneficiava tanto a alma como o corpo, devia-se pôr sal e óleo na água do batismo, um ministro não podia contrair segundas núpcias. Finalmente, declarou ter mudado de opinião sobre Calvino, considerando-o um herege desviado da fé. Restringiu as prédicas a meia hora e passou a assisti-las raramente.

Jean de Léry, em seus escritos, sugere que Villegaignon teria recebido cartas do cardeal de Lorena censurando-o fortemente por ter abandonado a fé católica e ele, temeroso das consequências, teria mudado de posição.

Os reformados passaram a celebrar a Ceia à noite, sem o conhecimento do comandante, que em fins de outubro os expulsou para o continente. Impossibilitados de dar continuidade ao seu trabalho, no início de 1558, eles decidiram retornar para a França. Contudo, diante das condições precárias da embarcação, cinco dos calvinistas decidiram voltar à terra firme: Pierre Bourdon, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, André Lafon e Jacques Le Balleur.

A Confissão de Fé da Guanabara e o interrogatório dos huguenotes

Acusados por Villegaignon de serem traidores e espiões, os cinco huguenotes que permaneceram no Brasil foram presos e receberam um questionário sobre pontos teológicos, tendo apenas doze horas para respondê-lo. A resposta, escrita com tinta de pau-brasil pelo leigo Jean de Bourdel, ficou conhecida como Confissão de Fé da Guanabara ou Confissão Fluminense. Os outros signatários foram Pierre Bourdon e Matthieu Verneuil.

A Confissão de Fé da Guanabara foi redigida entre 4 de janeiro e 9 de fevereiro de 1558, com a data exata geralmente referida como 17 de janeiro de 1558. A introdução faz uma bela aplicação do texto de 1 Pedro 3:15, que exorta os cristãos a estarem “sempre preparados para responder a todo aquele que pedir a razão da esperança” que há neles.

A confissão, escrita originalmente em latim, tem a forma de um credo, pois a maior parte dos parágrafos começa com a palavra “cremos”. Todavia, sua extensão e variedade de temas a coloca na categoria das confissões de fé, comuns na época da Reforma.

O documento é composto por 17 parágrafos de diferentes tamanhos que tratam de seis questões principais:

  1. Parágrafos 1-4: a doutrina da Trindade e, em especial, a pessoa de Cristo, com as suas naturezas divina e humana;

2. Parágrafos 5-9: a doutrina dos sacramentos, sendo a Ceia tratada em quatro artigos e o batismo em um;

3. Parágrafo 10: o livre arbítrio;

4. Parágrafos 11-12: a autoridade dos ministros para perdoar pecados e impor as mãos;

5. Parágrafos 13-15: divórcio, casamento dos religiosos e votos de castidade;

6. Parágrafos 16-17: intercessão dos santos e orações pelos mortos.

O texto revela grande conhecimento da Bíblia, da teologia e da história da Igreja por parte do autor. São feitas referências ao Concílio de Nicéia e seu credo, bem como a vários Pais da Igreja: Agostinho, Tertuliano, Ambrósio e Cipriano. O documento tem um forte teor bíblico e reformado, destacando pontos como a centralidade da Escritura, a natureza simbólica dos sacramentos, a supremacia de Cristo, a importância da fé e a eleição, entre outros.

Após receber a Confissão, Villegaignon considerou-a herética, especialmente por sua posição sobre a Ceia do Senhor. Ele convocou os huguenotes para um interrogatório, no qual tentou persuadi-los a abandonar suas convicções reformadas e aceitar a doutrina católica romana sobre os sacramentos. Os prisioneiros, no entanto, mantiveram-se firmes em sua fé, recusando-se a renunciar às doutrinas que consideravam bíblicas.

A execução dos mártires da Guanabara

Diante da recusa dos huguenotes em renunciar às suas convicções, Villegaignon ordenou sua execução. Na sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre Bourdon foram conduzidos ao local da execução.

Segundo o relato de Jean de Léry, baseado em testemunhas oculares, os três homens enfrentaram a morte com notável coragem e serenidade. Antes de serem executados, tiveram permissão para orar. Jean du Bourdel, o principal autor da Confissão, orou fervorosamente, pedindo a Deus que fortalecesse a ele e a seus companheiros na hora final e que perdoasse seus algozes.

Em seguida, os três foram estrangulados um após o outro. Seus corpos foram despidos e lançados nas águas da Baía de Guanabara. Este método de execução – estrangulamento seguido de lançamento ao mar – era comum para os considerados hereges, pois negava-lhes um túmulo cristão e qualquer possibilidade de veneração posterior.

André Lafon, o quarto huguenote, foi poupado por duas razões: ele vacilou em suas convicções durante o interrogatório e era o único alfaiate da colônia, sendo, portanto, considerado indispensável. Jacques Le Balleur, o quinto membro do grupo, havia conseguido fugir antes da prisão. Mais tarde, foi capturado pelos portugueses, encarcerado na Bahia e finalmente executado no Rio de Janeiro em 1567.

A execução dos três huguenotes marca o primeiro martírio protestante nas Américas, antecedendo em décadas os martírios de protestantes na América do Norte. É um episódio significativo não apenas para a história do protestantismo no Brasil, mas para a história do cristianismo no Novo Mundo como um todo.

O testemunho de Jean de Léry e a preservação da memória dos mártires

A história dos mártires da Guanabara teria sido esquecida não fosse pelo testemunho de Jean de Léry, um dos huguenotes que conseguiu retornar à França. Léry, que mais tarde se tornou pastor reformado, escreveu um relato detalhado de sua experiência no Brasil, intitulado “Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, autrement dite Amérique” (História de uma viagem feita à terra do Brasil, também chamada América), publicado pela primeira vez em 1578.

Nesta obra, considerada uma das primeiras e mais importantes etnografias do Brasil indígena, Léry dedica considerável atenção aos eventos que levaram ao martírio de seus companheiros. Ele descreve Villegaignon como um homem volúvel e traiçoeiro, chamando-o de “o Caim da América” por ter derramado o sangue inocente de seus “irmãos”.

O relato de Léry, juntamente com o texto da Confissão de Fé da Guanabara, foi incluído por Jean Crespin em seu “Histoire des Martyrs” (História dos Mártires), uma compilação de narrativas sobre protestantes que morreram por sua fé. Esta obra, publicada pela primeira vez em 1554 e expandida em edições subsequentes, tornou-se um importante instrumento para preservar a memória dos mártires protestantes e inspirar os fiéis a permanecerem firmes em suas convicções mesmo diante da perseguição.

Graças a esses registros, a história dos mártires da Guanabara foi preservada e transmitida às gerações futuras. No entanto, permaneceu relativamente desconhecida no Brasil até o início do século XX, quando o presbítero Domingos Ribeiro publicou, em 1917, “A Tragédia da Guanabara”, que incluía a tradução da Confissão de Fé feita por Erasmo Braga em 1907, a pedido do Rev. Álvaro Reis.

Desde então, a história dos mártires huguenotes tem sido gradualmente recuperada e valorizada, especialmente pelas igrejas de tradição reformada no Brasil, que veem nesse episódio um capítulo fundamental de sua herança espiritual e histórica.

O fim da França Antártica e o destino de Villegaignon

Após a execução dos huguenotes, a França Antártica continuou a existir por mais alguns anos, mas seu destino já estava selado. Em 1559, Villegaignon decidiu retornar à França em busca de apoio, deixando seu sobrinho, Bois Le Comte, como comandante.

Na França, Villegaignon envolveu-se em controvérsias teológicas, escrevendo obras contra a teologia reformada e sendo refutado por teólogos calvinistas. Ele permaneceu um ferrenho opositor da Reforma até sua morte em 1571.

Enquanto isso, no Brasil, os portugueses, preocupados com a presença francesa em seus domínios, organizaram expedições para expulsar os invasores. Em 1560, uma primeira tentativa liderada por Mem de Sá, o terceiro governador-geral do Brasil, conseguiu destruir o Forte Coligny, mas não eliminou completamente a presença francesa, que se refugiou no continente e estabeleceu alianças com os indígenas tamoios.

Finalmente, em 20 de janeiro de 1567, uma expedição liderada por Estácio de Sá, sobrinho de Mem de Sá, conseguiu derrotar definitivamente os franceses e seus aliados indígenas, pondo fim à França Antártica. Foi durante este conflito final que Jacques Le Balleur, o huguenote que havia escapado da execução em 1558, foi capturado e enforcado pelos portugueses.

A derrota da França Antártica marcou o fim da primeira tentativa de estabelecer uma presença protestante permanente no Brasil. Seria necessário esperar até o século XIX, após a abertura dos portos brasileiros às nações amigas em 1808 e a chegada de imigrantes e missionários protestantes, para que o protestantismo pudesse finalmente estabelecer-se de forma duradoura no país.

O significado teológico e histórico do martírio dos huguenotes

O martírio dos huguenotes da Guanabara possui um significado teológico e histórico que transcende seu contexto imediato:

1. Testemunho da Universalidade da Fé Reformada

O martírio demonstra que a fé reformada não estava confinada à Europa, mas rapidamente se espalhou para o Novo Mundo. O fato de que cristãos reformados no Brasil colonial, a milhares de quilômetros de Genebra, estivessem dispostos a morrer por suas convicções, testemunha a profundidade e a universalidade dessa tradição teológica.

2. Exemplo de Fidelidade Doutrinária sob Pressão Extrema

Os mártires da Guanabara oferecem um poderoso exemplo de fidelidade doutrinária mesmo sob a ameaça de morte. Eles poderiam ter salvado suas vidas simplesmente renunciando a algumas de suas convicções teológicas, mas preferiram morrer como fiéis testemunhas da verdade conforme a compreendiam.

Este exemplo desafia a igreja contemporânea a manter a integridade doutrinária mesmo quando isso implica em custos sociais, profissionais ou pessoais.

3. Afirmação da Primazia da Consciência Informada pelas Escrituras

O martírio dos huguenotes representa uma afirmação da primazia da consciência informada pelas Escrituras sobre a autoridade eclesiástica ou política. Os mártires recusaram-se a aceitar doutrinas que consideravam contrárias à Bíblia, mesmo quando impostas por uma autoridade estabelecida.

Este princípio – a primazia da consciência informada pelas Escrituras – tornou-se um dos pilares da tradição protestante e um importante contributo para o desenvolvimento da liberdade religiosa e da liberdade de consciência no mundo ocidental.

4. Marco na História do Protestantismo nas Américas

O martírio dos huguenotes da Guanabara constitui um marco significativo na história do protestantismo nas Américas, antecedendo em décadas a chegada dos peregrinos puritanos à Nova Inglaterra (1620) e o estabelecimento das primeiras igrejas protestantes permanentes no continente.

Este episódio demonstra que a presença protestante no Novo Mundo é mais antiga e mais diversa do que geralmente se reconhece, incluindo não apenas a tradição anglo-saxônica que se tornou dominante na América do Norte, mas também a tradição reformada francesa que, embora efêmera, deixou sua marca no Brasil colonial.

O legado dos mártires para a igreja contemporânea

O legado dos mártires da Guanabara para a igreja contemporânea é multifacetado e profundamente relevante:

1. Inspiração para a Fidelidade em Tempos de Perseguição

Em um mundo onde cristãos continuam a enfrentar perseguição em muitas regiões, o exemplo dos mártires da Guanabara oferece inspiração para a fidelidade mesmo diante do sofrimento e da morte. Seu testemunho nos lembra que a fé cristã genuína frequentemente exige um preço a ser pago.

2. Chamado à Integridade Doutrinária

Em uma época de relativismo teológico e pressão para diluir as convicções cristãs históricas, os mártires da Guanabara nos chamam à integridade doutrinária. Eles nos lembram que algumas verdades são tão fundamentais que vale a pena morrer por elas.

3. Valorização da Herança Reformada

Para as igrejas de tradição reformada no Brasil, os mártires da Guanabara representam um capítulo precioso de sua herança espiritual e histórica. Seu sacrifício nos lembra que o protestantismo no Brasil tem raízes muito mais antigas do que geralmente se reconhece.

4. Estímulo à Coragem Moral

Os mártires da Guanabara exemplificam a coragem moral – a disposição de fazer o que é certo, independentemente das consequências. Em um tempo em que a conformidade social e o medo da rejeição frequentemente silenciam as vozes proféticas, seu exemplo nos desafia a falar a verdade com amor, mesmo quando isso é impopular ou perigoso.

5. Lembrete da Soberania de Deus na História

A história dos mártires da Guanabara nos lembra da soberania de Deus na história. Embora a França Antártica tenha fracassado como empreendimento colonial e os huguenotes tenham sido executados, seu testemunho não foi em vão. Séculos depois, suas vidas e mortes continuam a inspirar e desafiar a igreja.

Como escreveu Tertuliano no século III, “o sangue dos mártires é semente da Igreja”. O sangue derramado na Guanabara em 1558 foi semente que, embora tenha demorado a germinar, eventualmente contribuiu para o florescimento da fé reformada no Brasil.

A memória dos mártires na igreja brasileira contemporânea

Nas últimas décadas, tem havido um crescente interesse pela história dos mártires da Guanabara entre as igrejas de tradição reformada no Brasil. Diversas iniciativas têm sido tomadas para preservar e honrar sua memória:

1. Publicações e Estudos Acadêmicos

Vários livros, artigos e teses têm sido publicados sobre a França Antártica, a Confissão de Fé da Guanabara e os mártires huguenotes. Estas publicações têm contribuído para um conhecimento mais amplo e profundo deste episódio histórico.

2. Comemorações e Celebrações

Algumas igrejas e instituições têm promovido eventos comemorativos no dia 9 de fevereiro, data do martírio, ou no dia 10 de março, data do primeiro culto protestante no Brasil. Estas celebrações geralmente incluem cultos especiais, palestras históricas e outras atividades educativas.

3. Monumentos e Memoriais

Em 1997, por ocasião do 440º aniversário do primeiro culto protestante no Brasil, foi inaugurado um monumento na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, em homenagem aos mártires da Guanabara. O monumento, uma iniciativa da Associação de Igrejas Evangélicas do Rio de Janeiro, consiste em uma placa comemorativa fixada em uma pedra.

4. Inclusão em Currículos Educacionais

A história dos mártires da Guanabara tem sido gradualmente incluída nos currículos de seminários teológicos e escolas confessionais, especialmente aqueles ligados às denominações de tradição reformada. Esta inclusão tem ajudado a formar uma nova geração de líderes conscientes desta importante herança.

5. Produções Culturais

Nos últimos anos, têm surgido diversas produções culturais inspiradas na história dos mártires da Guanabara, incluindo peças teatrais, documentários, músicas e obras de arte. Estas produções têm contribuído para difundir a história dos mártires para um público mais amplo.

Estas iniciativas, embora significativas, ainda são limitadas em seu alcance. A história dos mártires da Guanabara permanece relativamente desconhecida para a maioria dos brasileiros, inclusive para muitos cristãos evangélicos. Há, portanto, um trabalho contínuo a ser feito para preservar e difundir esta importante herança histórica e espiritual.

Perguntas frequentes sobre o martírio dos huguenotes

Por que os huguenotes foram executados na Guanabara?

Os huguenotes foram executados por ordem de Nicolas Durand de Villegaignon, o comandante da colônia França Antártica, por se recusarem a renunciar às suas convicções teológicas reformadas, especialmente em relação à Ceia do Senhor. Villegaignon, que inicialmente parecia simpático à fé reformada, mudou de posição e passou a exigir que os huguenotes aceitassem doutrinas católicas romanas.

Quem eram os mártires da Guanabara?

Os mártires da Guanabara eram três huguenotes (protestantes franceses) enviados ao Brasil pela Igreja Reformada de Genebra: Jean du Bourdel, o principal autor da Confissão de Fé da Guanabara; Matthieu Verneuil e Pierre Bourdon, que também assinaram a Confissão. Eles foram estrangulados e lançados ao mar no dia 9 de fevereiro de 1558.

Como sabemos sobre o martírio dos huguenotes?

A principal fonte histórica sobre o martírio dos huguenotes é o relato de Jean de Léry, um dos huguenotes que conseguiu retornar à França. Léry escreveu um livro detalhado sobre sua experiência no Brasil, que inclui informações sobre o martírio baseadas em testemunhas oculares. Este relato, juntamente com o texto da Confissão de Fé da Guanabara, foi incluído por Jean Crespin em sua “História dos Mártires”.

Qual é a importância histórica do martírio dos huguenotes?

O martírio dos huguenotes da Guanabara marca o primeiro martírio protestante nas Américas e constitui um capítulo fundamental na história do cristianismo reformado no Novo Mundo. É um testemunho da presença protestante no Brasil muito antes da chegada dos missionários do século XIX que tradicionalmente são associados ao início do protestantismo no país.

Conclusão: O custo do discipulado e o valor do testemunho fiel

A história dos mártires da Guanabara nos confronta com uma verdade fundamental do evangelho: o discipulado cristão tem um custo. Como Jesus disse aos seus seguidores: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Marcos 8:34).

Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre Bourdon entenderam e aceitaram esse custo. Eles poderiam ter salvado suas vidas renunciando a algumas de suas convicções teológicas, mas escolheram permanecer fiéis à verdade conforme a compreendiam, mesmo que isso significasse a morte.

Seu martírio nos lembra que a fé cristã não é um acessório opcional que podemos descartar quando se torna inconveniente ou perigoso. É um compromisso total com Cristo e sua verdade, um compromisso que pode exigir o sacrifício de tudo, inclusive da própria vida.

Ao mesmo tempo, a história dos mártires da Guanabara nos assegura que nenhum sacrifício feito por Cristo é em vão. Embora a França Antártica tenha fracassado como empreendimento colonial e os huguenotes tenham sido executados, seu testemunho continua a inspirar e desafiar a igreja quase cinco séculos depois.

Como escreveu o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, ele próprio um mártir que morreu nas mãos dos nazistas: “Quando Cristo chama um homem, ele o convida a vir e morrer”. Os mártires da Guanabara responderam a esse chamado com coragem e fidelidade, deixando-nos um exemplo que continua a ressoar através dos séculos.

Que possamos, como igreja contemporânea, honrar seu legado não apenas preservando sua memória, mas também imitando sua fidelidade à verdade do evangelho, independentemente do custo.

Você gostaria de aprofundar seu conhecimento sobre os mártires da Guanabara e seu significado para a igreja hoje? Continue acompanhando nossa série de artigos sobre a Confissão de Fé da Guanabara e compartilhe este conteúdo com outros interessados na rica herança da fé reformada no Brasil.

Referências bibliográficas

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13. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2008.

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